De Morro Agudo para o mundo: a trajetória de Dudu e a potência do hip hop como ferramenta de transformação

Aos 46 anos, Flávio Eduardo da Silva Assis é mais conhecido como Dudu de Morro Agudo — nome artístico e manifesto de origem. Morador do bairro homônimo em Nova Iguaçu desde que nasceu, Dudu é rapper, arte-educador, produtor cultural, doutor em educação e uma das principais vozes do hip hop na Baixada Fluminense. Sua trajetória é atravessada por um compromisso com o território, a juventude preta e a transformação social através da arte.

“Gostaria de ser apresentado como rapper, porque foi o que me trouxe até aqui. Mas também como arte-educador e produtor cultural, porque é o que mais venho fazendo dentro do hip hop”, diz ele logo no início da conversa. E não é exagero: Dudu fundou o Instituto Enraizados há 25 anos, um dos principais coletivos culturais da Baixada, com forte atuação em projetos de arte, educação e cidadania.

Ao contrário do que muitos ouviram ao longo da vida — de que quem é bem-sucedido “sai do bairro” — Dudu fez a escolha inversa. Decidiu ficar. “Por algum motivo, gosto mesmo é de Morro Agudo. Desde pequeno ouvia que quem vencia ia embora. E eu sabia que ia ficar. Queria mudar a perspectiva das pessoas sobre o lugar.”

O bairro é sua matéria-prima. Suas músicas são crônicas do cotidiano, e ele se define como um cronista periférico: “Meu rap é narrativo. Observo o dia a dia, as histórias do bairro, e transformo em letra.”

Dudu descobriu o hip hop ainda adolescente, quando um amigo lhe entregou uma fita cassete do grupo Consciência X Atual. Aquilo foi um divisor de águas. Em seguida, mergulhou no universo de GOG, Thaíde, Gabriel O Pensador, até chegar nos Racionais MCs. “Mesmo muito tímido, mesmo achando que nunca ia subir num palco, eu sabia que minha vida seria no hip hop. Hoje minha profissão é hip hop.”

Entre tentativas frustradas de ser b-boy e grafiteiro — barradas por um “moinho de vento” mal executado e pelo daltonismo — foi no rap que ele encontrou abrigo e força. Com o tempo, o conhecimento se tornou seu maior trunfo. “Dentro do quinto elemento do hip hop, eu sou arte-educador e pesquisador. Isso engloba tudo: livro, cartografia, produção. É o conhecimento em ação.”

O Enraizados nasceu dessa junção entre cultura, política e educação. “Quando pensei no Enraizados, com 18 anos, não sabia onde íamos chegar. Mas sabia que o hip hop podia transformar vidas.” O coletivo foi responsável por formar dezenas de artistas, produtores e educadores. Mais que isso: criou um território simbólico onde ser preto, periférico e sonhador é um direito.

“Sou o mais antigo no Enraizados. Mas a galera nova me supera: já nasceram com o Enraizados existindo. Não conhecem um mundo sem ele.”

Dudu não esconde a frustração com a falta de valorização do hip hop em Nova Iguaçu. Apesar da potência das rodas de rima, batalhas e eventos culturais, ele aponta a ausência de políticas públicas específicas para o movimento na cidade. “Tem reunião pra discutir música, artesanato, audiovisual… e nada de hip hop. Aqui, a repressão ainda vem antes do fomento.”

Ele insiste que o hip hop é mais do que música ou dança: é uma cultura, um projeto político. “Não é só uma atitude política. É um coletivo com visão de mundo. A maioria das pessoas no hip hop quer um mundo mais justo.”

A transformação que ele deseja para a cidade e para a cultura começa na juventude. “Quando vejo 500 moleques numa batalha de rima, vejo potência. Mas se a gente não se organiza, o poder público não respeita.”

A experiência mais marcante de sua trajetória não foi subir num palco famoso, mas levar jovens do Enraizados para uma conferência internacional nos Estados Unidos. “Eles foram apresentar uma pesquisa feita em Morro Agudo. Seis meses de inglês capenga, mas chegaram lá falando. Voltaram transformados. Agora acham que podem ir quando quiserem. Desbloqueou.”

Esse desbloqueio de mentalidade é o que Dudu quer deixar como legado: uma juventude periférica que sonha grande, se organiza e ocupa espaços. “Agora a responsabilidade deles é manter acesa a chama do sonho pro próximo.”

Como educador, sua abordagem é horizontal. Com o RapLab, oficina de criação de raps com base em temas sociais, Dudu conecta arte e conteúdo. Ele provoca os alunos com questões complexas e ouve respostas surpreendentes. “As crianças de hoje têm uma consciência que minha mãe não tinha. Tem algo acontecendo.”

A escola, no entanto, nem sempre foi um lugar seguro. Pelo contrário. “Sofri todos os tipos de violência ali dentro. Foi o hip hop que me mostrou que aquilo era violência e me ensinou a me defender.” Dudu conta que resolvia tudo na porrada e, mesmo sendo o melhor aluno, virou o mais indisciplinado. “O lugar onde o racismo mais bateu foi na escola.”

Hoje, é ele quem volta às escolas como educador, buscando fazer diferente. E defende a valorização da escola pública com paixão. “O Brasil não é pobre, é desigual. Dinheiro tem. Falta vontade política.”

Ele também fala da importância da saúde mental. Durante décadas, ignorou o tema — até sua filha afirmar: “Faço terapia hoje porque você não fez.” Isso o fez refletir sobre os traumas herdados e sobre o quanto a terapia ainda é inacessível para a maioria da população.

Na espiritualidade, Dudu se define como candomblecista por escolha política. “Tudo que é preto é perseguido. E quanto mais espaço eu tiver, mais eu vou falar por quem é excluído.” Sua religiosidade, no entanto, está mais conectada à energia: “Acredito que quando fazemos o bem, geramos energia boa.”

Sobre seu projeto mais representativo, Dudu aponta a música “Reflexões que ainda me tiram o sono”, composta durante seu doutorado. “É a mais madura que já fiz. Toda vez que escuto, eu choro. Ela me atravessa.”

Entre seus sonhos, ele destaca três: ver o Enraizados funcionando como uma cooperativa cultural autônoma, dar aula na UFRRJ e, quem sabe, lecionar na Duke University. “Mas esse último depende de muitos fatores… inclusive da política internacional.”

Se pudesse deixar uma mensagem para os jovens, ele diria: “Acredite no seu potencial. Se desenvolva. Ande com quem te faz pensar. E nunca ande sozinho. A luta é coletiva.”

O hip hop que ele deseja deixar como legado? Um que resgate pelo menos 30% da essência dos anos 90. “Mais preto, mais comunitário, mais comprometido com a luta. Menos Drake, mais Kendrick Lamar.”

Para Dudu, os nomes fundamentais do hip hop em Nova Iguaçu incluem Genaro, Mad e Luke — precursores do movimento na cidade — além de Átomo e Lisa Castro, que representam a continuidade e a força feminina no movimento.

Sobre os espaços, ele destaca a Praça dos Direitos Humanos, a pista de skate, a Praça de Morro Agudo e, claro, o Instituto Enraizados. “Esses lugares acolheram lideranças até termos nosso próprio espaço.”

E se um dia existir um museu do hip hop na cidade, ele espera que seja vivo, interativo, em constante atualização. “Que cada novo integrante do hip hop faça parte do acervo. Que tenha entrevistas, roupas de época, tecnologia… Que seja a cara da nossa história.”

Dudu de Morro Agudo é, como ele mesmo diz, fruto da família, da rua e da escola. Mas é também o próprio território falando. Um irmão mais velho, como descreve o hip hop, que aponta o caminho sem carregar no colo. Um educador que transforma o mundo com uma rima, uma pergunta ou um projeto coletivo. E que segue, como sempre, de Morro Agudo para o mundo — sem sair do lugar.

Conversa Cartográfica com Dudu de Morro Agudo

Gabrielle Almeida: Boa tarde, Dudu. Tudo bem?

Dudu de Morro Agudo: Tudo bom, Gabi.

Gabrielle Almeida: Vamos começar com a sua identificação, sua origem? Qual nome você quer que a gente use aqui hoje com você?

Dudu de Morro Agudo.

Gabrielle Almeida: E como você gostaria de se apresentar para quem ainda não te conhece?

Isso é importante. Eu gostaria de ser apresentado como rapper, que foi o que me trouxe até aqui. Mas também gosto muito de ser apresentado como arte-educador e produtor cultural, que é o que mais venho fazendo durante minha trajetória dentro do hip hop. Foi isso que deu origem ao Enraizados e tudo mais.

Gabrielle Almeida: Você nasceu em Nova Iguaçu, está aqui desde sempre? Como você chegou aqui?

Nasci em Nova Iguaçu. Estou com 46 anos e, desde que nasci, morei em três casas diferentes, sendo que duas são no mesmo quintal, a cerca de 100 metros da primeira. Por algum motivo, gosto mesmo é de Morro Agudo. Desde pequeno, ouvia que as pessoas bem-sucedidas iam embora daqui, e eu sabia que ia ficar. Então o ideal seria tentar mudar a perspectiva das pessoas sobre o território. Moro aqui há 46 anos e, há 25, tento fazer as pessoas enxergarem o Morro Agudo com outros olhos.

Gabrielle Almeida: E a sua comunidade? Como ela influencia sua arte?

A comunidade influencia totalmente. Meu rap é narrativo, sou um cronista do cotidiano. Fico observando meus amigos, por exemplo. O Átomo é poeta, valoriza a poesia. Outros são cantores. Eu sou escritor, narro o dia a dia e uso o rap como plataforma para minhas ideias. O cotidiano de Morro Agudo está presente em quase todas as minhas músicas.

Gabrielle Almeida: O que mais te orgulha no seu território?

O Enraizados. É uma construção coletiva. Quando tive a ideia, com 18 anos, não imaginava onde chegaríamos, mas sabia que o hip hop podia transformar vidas. Não falo de ajuda material, mas de reflexão, de emancipação. O Enraizados ajuda as pessoas a entenderem quem são, se indignarem e correrem atrás de seus objetivos. Tenho muito orgulho de fazer parte disso desde o início. Eu sou a pessoa mais antiga no Enraizados. Mas a galera nova também me ganha nisso: nasceram já com o Enraizados existindo. Eles não conhecem um mundo sem o Enraizados.

Gabrielle Almeida: Qual foi seu primeiro contato com o hip hop?

Foi com o rap. Fui em uma excursão para Lambari, Minas Gerais, e um menino me deu uma fita cassete de um grupo chamado “Consciência X Atual”. Me apaixonei. Era um monte de moleque xingando, falando gírias, desafiando o sistema. Voltei ouvindo aquilo enlouquecido. Mostrei para o Luciano (Gomes), meu irmão de caminhada, e a gente começou a mergulhar no hip hop. Descobrimos GOG, Thaíde, Gabriel O Pensador, até chegar nos Racionais MCs. Aí vi que era isso que queria pra vida. Mesmo muito tímido, mesmo achando que nunca ia subir num palco. Mas sabia que minha vida seria no hip hop. Hoje minha profissão é hip hop.

Comecei com o rap, que era a grande parada do hip hop. Mas com o tempo achei maneiro dançar. Vi os moleques rodando de cabeça e tentei fazer um moinho de vento em casa. Derrubei rádio, televisão, machuquei a perna… percebi que break não era pra mim. Graffiti também não rolou por conta do daltonismo. Até tentei fazer um desenho e me sacanearam dizendo que parecia um “sutiã rei”. Então parei.

Agora tô me arriscando a ser DJ. Já temos os equipamentos no Enraizados, estou estudando. Mas até hoje, só o rap me aguentou. E aí vem o quinto elemento: o conhecimento. Dentro desse elemento, sou arte-educador e pesquisador. Isso engloba tudo. Fazer livro, cartografia, produzir. É o conhecimento em ação.

Gabrielle Almeida: Você lembra qual foi a primeira vez que recebeu dinheiro com hip hop?

Não lembro. Lembro das pessoas a quem eu paguei pela primeira vez. O primeiro que paguei foi R$5 para o Léo da Treze. A felicidade foi enorme. Isso tem pelo menos vinte anos. Agora, sobre o primeiro show que eu recebi cachê, não lembro. Lembro do primeiro show em si: foi em Barra do Piraí. Um amigo meu, o Wilson Neném, me chamou pra cantar num baile funk. Só que era funk o tempo todo, e nosso rap era só reclamação, denúncia. Era um show que quebrava o clima da festa. Eu tremia de nervoso, meu joelho batia um no outro. Mas foi emocionante. Enfrentei meu medo. A partir dali, percebi que eu podia cantar. Não era prazeroso, mas era possível. Eu precisava entregar o melhor. Nunca foi fácil. Não lembro o primeiro cachê, mas sei que ganhei muito dinheiro com rap. Consegui construir boa parte da minha casa com isso. Fazia muito show.

Gabrielle Almeida: Então, de que ano foi o seu primeiro show?

Anos 2000.

Gabrielle Almeida: Em algum momento dessa sua trajetória, desde o Enraizados até antes, você já se afastou do hip hop?

Nunca.

Gabrielle Almeida: Nunca tentou desistir?

Pensar em desistir, eu penso três vezes por dia, tá ligado? Mas aí eu olho pra trás e vejo que tenho mais tempo de vida dentro do hip hop do que fora dele. Voltar atrás seria mais trabalhoso. Então, vamos pra frente.

Gabrielle Almeida: Como é que o hip hop mudou sua percepção de vida?

A primeira transformação foi na questão racial. Eu passei a entender como a sociedade trata as pessoas pretas. Durante muito tempo, eu me sentia menor, com menos valor. O hip hop mostrou que não — muito pelo contrário. Mostrou o valor da população preta, principalmente na resistência. Porque só de estarmos vivos hoje, com tudo que já passamos, já é uma grande vitória.

O hip hop me deu um motivo pra lutar, pra estar vivo. Ele é entretenimento, mas também é luta e resistência. E é por isso que eu sempre digo: hoje tem muito branco dentro do hip hop ditando regra em uma cultura que é preta. Nada contra brancos no hip hop, mas ditar regra? Isso é esquizofrênico. Todos os estilos musicais criados por pessoas pretas foram cooptados.

E quando você tenta falar disso, parece recalque. Mas não é. O hip hop me deu paciência, me ensinou a respeitar. Tenho saudade do hip hop que me formou, principalmente do respeito que existia. Eu valorizo a energia da juventude hoje, porque a minha tá acabando. Meu papel agora é mostrar pra nova geração uma amostra daquele hip hop que eu conheci. Eles decidem se querem seguir por esse caminho ou outro. Mas, pra mim, o hip hop sempre foi como um irmão mais velho.

Gabrielle Almeida: Quem foram as pessoas, grupos ou coletivos que marcaram a sua caminhada até aqui?

Como é uma cartografia de Nova Iguaçu, eu preciso citar muita gente daqui. Mas dois caras foram muito importantes na minha vida, e eles nem são do Rio: o Preto Ghóez, que foi meu mentor e faleceu muito jovem, e o Lamartine. Os dois são do Maranhão, do grupo Clã Nordestino. O Lamartine me ensinou que hip hop também é política, que a gente tem que dialogar com o poder público, pensar política pública pra juventude.
No Rio, teve o Wilson Neném, de Barra do Piraí, que veio morar aqui no Rio. Também teve o Fiell e o Dinho K2, que fizeram parte dos Enraizados comigo por muito tempo. Foram importantes na caminhada.

E tem a galera de Morro Agudo: Átomo e Lisa Castro, que conheço há anos e que também nunca se afastaram do hip hop. O Kall e o Jack, do Fator Baixada — que, pra mim, é o grupo de rap mais importante e antigo de Morro Agudo — também foram fundamentais. O Genaro também, que tinha suas atividades de hip hop num espaço chamado MAB. Ele é uma pessoa difícil, mas muito importante pro hip hop na cidade.

Sempre que eu passava de ônibus e via o grafite torto na porta do MAB escrito “hip hop”, eu pensava: “Preciso vir aqui”. Porque naquela época, se tu visse qualquer coisa escrita “hip hop”, tu se jogava. Não tinha em lugar nenhum.
Então esses caras que chegaram antes de mim foram os que me ensinaram — às vezes nem com palavras, mas com o comportamento, com a vivência. Como se comportar na comunidade. Esses foram os mestres.

Gabrielle Almeida: Qual foi o momento mais marcante da sua carreira até aqui?

Caraca… Mano, foi a viagem pros Estados Unidos. Levar os moleques pra lá. Não tem campeonato mundial de hip hop, não tem Rock in Rio, não tem nada que se compare a isso. Levar essa galera e mostrar pra eles que o mundo é muito maior do que aquilo que a gente achava.
Esse choque de cultura mostrou pra eles que as regras que nos impõem são pra nos limitar. E quando a gente desconsidera essas regras, a gente cresce — e aí não tem mais limite. Fizemos uma conferência internacional numa universidade que chamam de “elite”, falando de Morro Agudo, de política, de hip hop, da cidadania.

A gente começou uma pesquisa em Morro Agudo, e essa molecada foi lá apresentar. Lançou livro, explicou como produzem, como funciona o Enraizados. Os moleques fizeram seis meses de curso de inglês aqui — e olha que seis meses foi daquele jeito, né? Um dia vinha, outro não. Mas chegaram lá falando inglês. E todo mundo voltou diferente, transformado.

O Baltar quer morar nos Estados Unidos. O Dorgo já tá na faculdade. Todo mundo quer aprender inglês. O Higordão já falava [inglês], mas teve outra perspectiva lá. E tudo isso partiu do Enraizados, de Morro Agudo.

Agora os meninos daqui acham que eles podem ir quando quiserem. Desbloqueou. E aí eu falei pra eles: agora a responsabilidade de vocês é manter acesa a chama do sonho pro próximo.

Eu ficava incomodado por ser sempre eu viajando. Aí decidi dar um basta — com medo, claro, porque cortar esse tipo de coisa é delicado. Mas a gente fez algo impensável. Foi o maior feito coletivo do Enraizados. Disparado.

Gabrielle Almeida: Falando agora mais de Nova Iguaçu, como você vê a relação da cidade com o hip hop? Você acha que existe respeito?

Acho que algumas pessoas respeitam porque fazem parte. Pelo jeito como fazem música, como organizam eventos — dá pra ver que aquilo é importante na vida delas. Mas, ao mesmo tempo, existe um paradoxo: essas mesmas pessoas não se organizam politicamente para fazer o hip hop crescer como movimento na cidade.

Todo mundo é amigo, tá na batalha de rima, se encontra nos rolês, mas falta organização política mesmo. Quando eu vejo 500 moleques numa batalha de rima, vejo potência. O problema é que, se a gente não se reúne pra mostrar força política — mesmo com divergências — o poder público não respeita. E a gente percebe isso porque não existe nenhuma política pública específica para o hip hop em Nova Iguaçu.

Você vê reunião pra discutir artesanato, música, audiovisual… e nada de hip hop. E hip hop não é só música, nem só dança. É uma cultura inteira. Aqui tem muita gente praticando, muita gente curtindo — mas de forma desorganizada, dispersa, cada um na sua.

Essa desorganização faz com que os que deveriam nos respeitar não respeitem. Não fomentem, não invistam, e ainda por cima reprimam. Vai fazer roda de rima? O prefeito não apoia, o secretário não apoia, mas a polícia tá ali, reprimindo de alguma forma.

Isso só vai mudar quando a gente, como movimento, entender que é necessário ocupar alguns espaços. Reunião é chata? É. Mas é preciso. Se não, a gente vai continuar num lugar onde nem o sol bate — onde ninguém quer saber da gente.

A gente não entra nas escolas. Não somos convidados pros eventos da cidade. E eu sei que muitos fãs nossos gostariam de nos ver nesses espaços, pra se sentirem pertencentes. Mas depende de nós, de nos organizarmos mais.

Sempre falo isso pros caras quando a gente começa a produzir nossas atividades. Produzir um evento é uma grande responsabilidade. O evento é seu. É sua responsabilidade garantir que seja seguro, que todo mundo possa participar, porque o evento é num espaço público.

Na Batalha de Morreba, por exemplo, os moleques conseguiram criar algo incrível: não tem consumo de droga, não pode ser homofóbico, nem racista, nem machista. E aí falaram: “Mas como vamos rimar assim?”. Com criatividade, mano. E hoje, o nível da Batalha de Morreba é altíssimo.

Enquanto isso, teve roda de rima em que as pessoas nem iam ouvir rap — iam pra usar droga. O evento fica cheio, o produtor fica feliz, mas é um tiro no pé. Aí vem o preconceito: “um bando de drogado, vagabundo…”. E a gente ajuda a reforçar essa visão, mesmo sabendo que a juventude é potente.
Mas se essa potência fica escondida no nosso quintal, o mundo não vê. E a gente precisa mostrar o valor do hip hop. Tem maconheiro? Tem. Mas reduzir o hip hop a isso é enfraquecer demais a nossa potência cidadã.

Eu vejo o hip hop como um grupo político. Não é só uma atitude política, é um coletivo com visão de mundo. A maioria das pessoas dentro do hip hop quer um mundo mais justo. Luta contra o racismo, a favor das minorias. Isso é lutar por uma nova hegemonia.

Se você tem um conjunto de ideias sobre como a sociedade deve ser, você está fazendo política. Criando narrativas contra-hegemônicas. E o hip hop faz isso. A gente cria novas formas de pensar, de viver. Combatemos aquela visão de que Morro Agudo só tem bandido, que Nova Iguaçu é só cidade dormitório.
Como a gente enfrenta isso? Com música, com fotografia, com teatro, com matéria de jornal, com pesquisa acadêmica. É assim que a gente combate essas ideias, propondo outra forma de viver. Ainda é utopia, mas é isso que a gente busca tornar realidade.

O Enraizados faz isso duas vezes: faz dentro do hip hop e dentro da própria estrutura dele. As pessoas que se reúnem ali pensam num outro modelo de sociedade. Por isso somos políticos. E só tem dois jeitos de mudar a sociedade: ou é pela política ou é pela revolução.

E o que é revolução? É sangue, é pegar em arma, matar todo mundo e colocar outra coisa no lugar. Eu não conheço ninguém com disposição pra isso. E quem até teria, não tá indignado o suficiente. Então vamos pelo caminho mais difícil — ou mais fácil, depende — que é a política.
Em Nova Iguaçu, as violências nem sempre foram físicas. Muitas vezes são psicológicas. Impedem a gente de fazer eventos, ou reprimem enquanto a gente está fazendo. Já vi mais de 40 moleques serem levados num ônibus da polícia numa roda cultural. E o pior é que tem gente que acha isso maneiro. Eu não entendo isso.

As violências estão por toda parte. Eu sofri mais violência quando saía de Nova Iguaçu do que aqui dentro. Mas era olhar torto, repressão da polícia, humilhação na escola, dificuldade no trabalho. A gente tende a achar que violência é só física, mas a psicológica mina por dentro. E quando você percebe, o estrago já está feito.

Gabrielle Almeida:Você falou que é artista, produtor, educador, militante… Como é ser tudo isso em Nova Iguaçu especificamente?

É um paradoxo. É bom e frustrante ao mesmo tempo.

Alguns amigos dizem que se o Enraizados estivesse na Lapa, no Rio, teria outra visibilidade. Ia captar mais recursos, ia bombar. Eu até ganhei uma sala na Lapa, de um amigo, pra usar como quisesse. Mas não faz sentido. O Enraizados perde todo o significado se sair de Morro Agudo.
Aqui, as pessoas reconhecem a gente como resistência — tanto artística quanto politicamente. Mas a frustração vem porque, apesar de tanta potência, não há valorização. Ninguém diz “vamos investir nesses caras, fomentar o que eles fazem”.

Pra fazer qualquer coisa aqui, na Baixada como um todo, a gente tem que fazer três vezes mais esforço pra ter o mesmo resultado que outros lugares. Isso é muito frustrante. Mas, ao mesmo tempo, quando a gente consegue fazer, é bom demais.
O Festival Caleidoscópio é um exemplo. É muito difícil realizar ele em Morro Agudo. A gente contrata assessoria de imprensa, movimenta a internet, e a imprensa não se interessa. A imprensa só quer saber da violência daqui, não da arte.

Fizemos um festival incrível, com curso de produção, jovens focados, criando algo muito foda. Saiu em pouquíssimos espaços de imprensa. Mas, quando assassinaram um cara uma semana depois, recebi a notícia centenas de vezes — inclusive do John French, lá dos EUA. Isso é cruel, revoltante.
Como 24 horas de produção cultural não geram importância, mas a violência sim? Isso cansa. Dá vontade de desistir três vezes por dia. Parece que você tem uma âncora no pé e gente te puxando pra trás. É preciso muita força pra seguir em frente.

Mas eu acredito que dá pra mudar. Se eu não acreditasse, tava perdido. A arte muda a gente. E a gente muda o mundo. Paulo Freire dizia isso com a educação, e eu digo com a arte. Tá tudo misturado.
A arte não precisa ser formativa por obrigação, mas quando você é artista, ela naturalmente te desenvolve. Pra produzir arte, você precisa refletir sobre sua vida, a vida dos outros, o território. E isso te transforma.

E talvez a sua obra também transforme quem entra em contato com ela. A arte não precisa dar respostas — ela precisa provocar perguntas. Às vezes, só uma imagem já faz pensar. Uma linha de rap, um grafite, uma metáfora — tudo isso pode ser semente de mudança.

Gabrielle Almeida: Se o hip hop fosse uma pessoa, como você descreveria essa pessoa?

Seria meu irmão mais velho. Aquele cara que não te dá a resposta, mas te mostra o caminho. E, se você quiser se desenvolver, vai ter que caminhar por conta própria.

Um irmão mais velho porque ele me apresentou pessoas, e escolheu quem ia me apresentar. Podia ter sido qualquer um, mas foram pessoas do hip hop. Ele tem um acervo imenso de histórias, de conhecimento. Eu consigo até visualizar: um negão, fortão, bonitão pra caramba e muito seguro de si.
E que tenta fazer com que os outros também se tornem grandes como ele. O que é difícil pra caramba, porque ele é o hip hop.

Gabrielle Almeida: Como foi a sua experiência na escola? E como essa vivência influenciou sua vida e sua arte?

Primeiro que eu nem sabia por que eu ia pra escola. Isso já é ruim. Minha mãe diz que fui eu que pedi pra ir, desde pequeno. Sempre gostei de estudar. Mas a experiência escolar foi péssima. Sofri todos os tipos de violência ali dentro, e isso me fez não gostar da escola.
Foi o hip hop que me mostrou que aquilo era violência, e também me ensinou a me defender. Então minha relação com a escola continuou sendo ruim, mas eu passei a conseguir me defender.

A Sueli Carneiro fala uma parada que me representa. Antigamente eu tinha vergonha de falar isso, hoje tenho até orgulho. Eu resolvia tudo na porrada. Não tinha argumento, então era tapa mesmo. E, na escola, isso era respeitado. Eu batia em todo mundo. E, ao mesmo tempo, era o melhor aluno da sala. Depois fui virando o pior, mais indisciplinado.

O lugar onde o racismo bateu mais forte foi na escola. E falo isso na minha tese de doutorado. Eu não sei se eu ficava mais puto com os meninos e meninas que me sacaneavam ou com os professores, que tinham a obrigação de me proteger e não faziam nada.
Por muito tempo, a escola foi um lugar horrível. Mas, por ser tão ruim, ela me ensinou a me defender. Isso é doido. Ela me preparou pro mundo — porque a escola é um microcosmo. O que acontece lá dentro, acontece aqui fora. O hip hop me ensinou a enfrentar isso tudo.

O mais louco é que saí da escola com a ideia de nunca mais voltar. Por tudo que vivi lá. E porque o hip hop, que foi o que escolhi pra minha vida, não era bem-vindo na escola. Então eu achava que nunca mais ia entrar num colégio.

Só que o mundo gira. E o hip hop, que antes era marginalizado, passou a ser visto como solução. Aí começaram a nos chamar de volta. No início, eu achava isso muito estranho. Mas conversando com educadores — e eu falo educadores, porque elevo o nível — eu entendi o poder da escola pública. E aí comprei essa ideia.
O hip hop não pode entrar na escola só como entretenimento. Tem que ser ferramenta de educação. Tem que fazer a molecada pensar, produzir. O RapLab nasce muito dessa reflexão. Não pode ser só uma oficina de fazer qualquer coisa. Vamos discutir assuntos sérios. E fazer rap mesmo, de verdade. Mas com conteúdo pra levar pra vida.

Aquele mesmo cara que tinha problema com a escola é o que hoje ama dar aula — principalmente pro sexto ano. Que é o inferno (risos). E é ali que eu me sinto bem. Quanto mais bagunceiro, melhor. São os meus.

O pessoal fala muito no futebol: “a base tá vindo forte”.

E eu vejo isso na educação também. Nos últimos 15 anos indo às escolas com o RapLab, eu vi a consciência da molecada mudar completamente. Crianças de 9, 10 anos dissertando sobre racismo de um jeito que minha mãe não conseguiria. Tem algo acontecendo.

Gabrielle Almeida: Qual é a sua escolaridade?

Anota aí: eu sou doutor. Fiz graduação em Processamento de Dados, em Análise de Sistemas, depois em Sociologia. Fiz mestrado e doutorado em Educação. Fora os cursos de informática — fiz muitos. E adoro produção cultural.

Antes de dar aula em produção cultural, fiz dezenas de cursos de oratória, porque eu precisava aprender a falar bem. Não resolveu tudo, mas ajudou bastante. A graduação, o mestrado, o doutorado — são formas de luta, de ocupar espaços e disputar narrativas.
Mas os cursos mais maneiros que eu fiz foram nas ONGs. Curso com os amigos, com o Higordão. Começamos o curso de audiovisual no Quilombo Enraizados, na prática mesmo. É assim que a gente aprende.

Gabrielle Almeida: E, entre todas essas experiências e fontes de saberes, qual foi a principal pra você? A que mais te ensinou: a rua, a escola, a família?

Essa pergunta é arriscada, hein? (risos)
Mas, com certeza, minha família e a rua. A escola vem em terceiro lugar.

Minha família me preparou pra viver na rua. E a rua me preparou pro mundo. A rua tem códigos que você só aprende vivendo ali. Não tem outro lugar que te ensine. Isso é muito falado no hip hop: saber chegar, saber sair, ter o feeling. Isso é rua. E é sobrevivência.
Talvez, se eu não morasse em Morro Agudo — se fosse classe média ou morasse em outro bairro — essa ordem fosse diferente. Mas pra mim é: família, rua, escola… e depois a internet.

Gabrielle Almeida: Quando comecei a dar aula, nem me via como professor. Era oficineiro. Foi o Cleber Gonçalves que falou: “Isso que você faz é aula, pai”. Aí comecei a prestar atenção: o que é uma aula? Fui tentando entender.

No início do RapLab, eu nem me importava muito com o conteúdo das discussões. Eu queria que no final tivesse um rap pronto. Se não tivesse música, eu ficava frustrado. Pra mim, dar certo era sair com um rap feito.

Com o tempo, percebi que precisava me informar mais, estudar mais, pra levar mais conteúdo pra molecada e trocar com eles. Aí comecei a sentar com os meninos na escola de forma horizontal, olho no olho, deixando de lado a postura de professor avaliador. Queria provocar, fazer com que eles me dessem uma resposta pra uma questão complexa.

Se eu tivesse com eles hoje em sala, estaria discutindo a guerra entre Israel, Irã, Estados Unidos… Se a gente explica o contexto direitinho, eles respondem de formas incríveis, fora da caixinha.

Porque quando a gente cresce, vai pra faculdade, começa a responder o que os outros querem ouvir. A gente para de refletir de verdade. A molecada ainda tem outra lógica de pensamento, e pode nos ensinar muito — se a gente deixar de lado esse ego de “eu sou o professor e você é o aluno”.
Aprendi muito isso também na faculdade, por incrível que pareça.

A experiência com as escolas — com crianças, adolescentes — é riquíssima por isso: eu aprendo de verdade com eles. Não é papinho de “ensinar e aprender”, não. Eu aprendo mesmo.

O Dorgo e o Baltar podem confirmar isso. Eles foram meus alunos no RapLab e hoje fazem atividades sozinhos. Vão dar oficinas pro SESC, pra Rural… pra onde chamar. E eles também tinham problema com escola, igual a mim.
E quando você tá dentro da escola e a galera começa a te chamar de “professor”, isso te coloca num outro lugar. Aí você pensa: “Preciso evoluir, tenho uma responsabilidade agora”.

Além de tudo isso, tem a luta pela educação pública. Eu não trabalho em escola formal, com carteira assinada nem nada, mas me coloco como um professor que defende a melhoria da educação pública e a valorização dos profissionais da educação.
Durante a pandemia, a gente fez muito RapLab com a molecada. Vieram dois alunos do Colégio Pedro II. Eu conhecia o nome da escola, mas não sabia exatamente o que era. Quando os moleques chegaram, eram diferenciados. O nível de conhecimento deles era muito acima. Eu ficava anotando o que eles falavam pra pesquisar depois.

Fui entender o porquê: o professor lá tem dedicação exclusiva. Ele só trabalha naquela escola. E ganha um salário digno. Aí me pergunto: por que toda escola não é assim? Por que só algumas têm estrutura, e outras não?

O Dorgo e o Baltar até falam: “Mas é caro manter uma escola assim”. E eu respondo: o Brasil é um país rico. Quem acha que o Brasil é pobre, está enganado. O Brasil é desigual, não é pobre. O Brasil paga juros absurdos pra banco e reclama do Bolsa Família, do Pé de Meia pros estudantes.
Durante a pandemia, teve auxílio emergencial pra todo mundo. Até quem não tinha direito recebeu. E o Brasil quebrou? Não quebrou. Então tem dinheiro, sim. O que falta é vontade política.

Agora imagina formar uma geração inteira pra questionar o sistema? Não vão fazer isso nunca. Não vão investir nisso. Mas seria revolucionário se fizessem. Se os dois colégios da região fossem bilíngues, não só um. Porque o que é bilíngue hoje só atende a galera de fora. A comunidade mesmo quase não entra.
Por que o colégio do Welton Cordeiro, lá em Corumbá, não tem recursos pra valorizar os professores? Isso tudo é parte da luta. A gente tem que resistir e continuar tentando transformar.

Ao mesmo tempo que cuida da molecada, precisa estar no front — participando de conselhos, reuniões, audiências.
Porque é ali que está a mudança. Não adianta dizer “não gosto de política”. Quem está na política muda tudo. Então, mesmo não gostando, você precisa se informar, apoiar alguém que pense como você, construir caminhos.
É a luta pela hegemonia.

Gabrielle Almeida: Com quem você mais aprendeu dentro do hip hop?

Preto Ghóez.

Gabrielle Almeida: Qual a importância das amizades pra sua trajetória?

Os coletivos, as amizades… são eles que fazem a roda girar. Quando você não tem dinheiro, seus amigos são seu capital. São eles que fazem a coisa acontecer.
Pra você ter uma ideia, nesse último Festival Caleidoscópio, a gente conseguiu pagar todo mundo. Mas nos cinco primeiros, ninguém recebeu nada. Era tudo na raça, no suor. Teve gente que investiu anos ali — com trabalho, tempo, coração.

Antigamente, a gente chamava de “posse”. Não tinha muita instituição de hip hop, eram coletivos mesmo. Hoje em dia, a gente vê muito isso nas rodas de rima. São elas que sustentam o hip hop.

A juventude mantém o hip hop vivo. Sem juventude, não tem hip hop. Porque além de ser uma cultura preta, o hip hop é jovem. Sempre foi.
Na minha vivência, em Nova Iguaçu, os coletivos, os artistas, meus amigos, tiveram papel central. Sem eles, não dá pra fazer nada. Hip hop tem que ser coletivo. Não tem como ser sozinho.\

Você até pode tentar fazer tudo em casa, mas uma hora vai precisar de alguém. Sempre vai. Não tem jeito.

Gabrielle Almeida: E a saúde mental? Como você vê isso nesse meio todo? Você cuida da sua?

Durante toda a minha vida, eu nunca dei muita atenção pra isso. Falo até na minha tese. Nos anos 90, quando eu era adolescente, nenhum amigo meu fazia terapia. Era coisa de rico, impensável.
A primeira pessoa que falou comigo sobre isso foi minha filha. Ela tava passando por uma série de problemas e um dia me disse: “Faço terapia hoje porque você não fez.” Aquilo me bateu fundo. Fiquei pensando no tanto de trauma que passei pra ela — não por maldade, mas por ignorância mesmo, por não saber o que tava fazendo.

Tive uma experiência com terapia, achei super importante. Porque a gente que vive em modo de sobrevivência tá sempre no automático, no modo hard. A gente não para pra refletir sobre o que tá fazendo, sobre o 360 da vida.
E nesse corre, a gente vai acumulando violências que afetam nossa saúde mental. Então hoje eu entendo a importância, considero fundamental — mas não faço. Ainda não tô fazendo terapia.

Quero voltar, sim. Só tô organizando algumas coisas pra ter esse tempo. Acho que todo mundo devia fazer terapia. Todo mundo mesmo.
Na pandemia, conseguimos psicólogos e terapeutas pra algumas pessoas. Minha filha, inclusive, faz com uma amiga minha do NAV até hoje. O projeto acabou e ela continuou com a terapeuta.

Mas terapia ainda é caro. E num país tão desigual, até um curso de R$30 vira luxo. É barato pra quem tem dinheiro, mas muita gente não tem nem isso. Então, como instituição, o Enraizados às vezes consegue mais fácil fazer um projeto ou parceria com psicólogos do que a galera pagar do próprio bolso.

Gabrielle Almeida: E sobre espiritualidade? Como você se identifica religiosamente?

Eu não tenho uma religião formal. Politicamente, me defino como candomblecista. É uma escolha política, tá ligado?
Porque tudo o que é preto no Brasil é perseguido. E quanto mais espaço e voz eu tiver, mais eu vou falar por quem (junto) é excluído.
Minha família é de candomblé, minhas tias são do candomblé desde sempre. Mas isso nunca foi discutido abertamente lá em casa. Aprendi sobre a religião com a sociedade — e o que ela me ensinou? Que era “do diabo”.

Foi o hip hop que resgatou essa visão, que me fez olhar de outra forma pra Umbanda, pro Candomblé.
Vários lugares dizem que eu seria pastor, se fosse evangélico. Que seria liderança na igreja católica. No candomblé também. Mas eu não consigo me ver dentro de um templo, me dedicando assim. É sério demais, exige entrega total.

Então, minha relação com religião é política. E minha religiosidade se baseia em energia. Acredito que quando fazemos o bem, geramos energia boa. E se todos fazem o bem, essa energia boa engole qualquer energia ruim.

Mas o contrário também é verdade. Se o ambiente tá tomado de energia ruim, uma pessoa boa pode ser engolida.
Pra mim, caridade é isso. Não é só dar dinheiro. É um abraço, um almoço, uma escuta. É doar seu tempo. Às vezes, você salva uma vida com um pequeno gesto.
Gabrielle Almeida: Qual projeto ou realização pessoal mais representa tudo que você acredita até aqui?
Minha última música: Reflexões que ainda me tiram o sono. É a mais madura que já fiz. A que mais deu trabalho. E, toda vez que escuto, eu choro. Ela mexe comigo de verdade.

Ainda tem muita coisa pra ser feita a partir dela. É uma música que carrega muitas camadas, muitas possibilidades de desdobramento.

Gabrielle Almeida: E falando sobre o futuro… quais são os seus maiores sonhos?

Sonho é foda. Tem que ser grande, né? Eu sonho todo dia, realizo o tempo todo. Mas vou listar três coisas:
Primeiro: quero ver o Enraizados funcionando plenamente. Todo mundo entrando e saindo, sabendo o que tem que fazer. A galera escrevendo projeto, captando recurso, se pagando. Uma cooperativa cultural funcionando aqui dentro. Tá quase. Falta pouco.

Segundo: fazer concurso pra dar aula aqui na UFRRJ, em alguma área como relações étnico-raciais. Me vejo mais velho, desacelerando das outras funções, mas continuando a ensinar.

Terceiro: dar aula na Duke, nos Estados Unidos. Fui convidado pra lecionar lá entre 2026 e 2027. Mas, com o Trump voltando, minha chefe foi demitida e tá todo mundo rodando. Então não sei se vai rolar. É um sonho que não depende só de mim.

Gabrielle Almeida: Se você pudesse deixar uma mensagem pra alguém com 20 anos hoje, qual seria?

Vou deixar uma mensagem pros jovens. Porque velho, já foi.
Primeiro: acredite no seu potencial. Tem que fazer sentido pra você, não pros outros. Se fizer sentido, vai.

Segundo: se misture com pessoas que pensam parecido, mas não igual. Gente que te questione, que te alerte quando você estiver no caminho errado.

Terceiro: se desenvolva o máximo que puder. Estude muito. Isso parece clichê — “conhecimento ninguém te tira” — mas é verdade.

E quando eu falo estudar, não tô falando só de faculdade. É participar de encontros, conhecer pessoas, viver experiências. Levar isso pro que você quer construir.
Eu falo isso muito pro Einstein. Ele é muito focado no estúdio. Mas se ele não circular, não conhecer gente nova, vai ser o melhor produtor pra ele mesmo. Levei ele num evento no Leblon, com um pessoal grande do Spotify, do YouTube… um lugar que a gente normalmente não acessa.

Tem que ouvir o que os outros tão pensando. Não pra se moldar, mas pra questionar também. Aqui no nosso quintal, todo mundo se conhece. Então, se ele me mostra uma música ruim, eu vou falar: “Tá ruim”. Mas aí eu pergunto: você gostou? Se gostou, é isso. Vai. A arte é tua.
O importante é não andar sozinho. Porque você vai cair. E precisa de alguém pra te levantar — e você também vai levantar os outros. A luta é coletiva. Sempre foi.

Gabrielle Almeida: Que tipo de hip hop você gostaria de deixar como legado pra próxima geração?

Um hip hop com pelo menos 30% da essência dos anos 90. Musicalmente, tem muita coisa maneira hoje em dia — tirando os clássicos, claro. Mas o compromisso com a comunidade, com a luta contra o sistema… aquilo era foda.

A gente entrava no hip hop sem perspectiva de ganhar dinheiro. Hoje, tem uma galera querendo ficar rica com isso. Quer bater um milhão no Spotify. Eu tô há 25 anos nisso e meu clipe mais visto tem 39 mil views. Os caras postam uma parada em 15 minutos e batem 1 milhão. Daqui a 15 dias, ninguém lembra da música.
Não tem nada de errado em querer alcançar isso. Mas o hip hop precisa estar mais comprometido com a base. Precisa ser mais preto, mais como o Djonga, mais como o BK.

Eu nem curto muito o som deles, mas em termos de representatividade, prefiro muito mais eles do que o Felipe Ret, por exemplo. Se eu pudesse escolher, seria o Átomo, tá ligado? Mas, já que tem que ser alguém mais visível, que seja o BK, o Djonga. O futuro é esse: menos Drake, mais Kendrick Lamar.
Gabrielle Almeida: E quais são as cinco pessoas mais importantes do hip hop em Nova Iguaçu pra você?
Vou nos mais velhos. A Tríade: Genaro, Mad e Luke. Pra mim, são os precursores do hip hop em Nova Iguaçu. Se alguém reclama do hip hop hoje, imagina na época desses caras.

Conversar com o Mad é incrível. Ele fala que não tinha WhatsApp, nem Uber, e eles pegavam trem de Mesquita pra Austin, que era um lugar perigoso pra caramba, só pra dançar. Ele ensinava pro Luke e pro Genaro. O Mad foi o grande precursor.

Fora esses três, tem o Átomo, que é importantíssimo pelo repertório artístico dele. É o cara que mais tem disco, que mais produz.
E a Lisa Castro, por ser uma referência de mulher preta na cidade. Foi a primeira mina local que eu vi ser referência pra outras minas. E essas minas que a Lisa Castro inspirou, hoje já são referência pra outras.

Gabrielle Almeida: E os espaços importantes pro hip hop em Nova Iguaçu?

Antes de falar do Enraizados, que é óbvio, tem a Praça dos Direitos Humanos, que acolheu muitos eventos. A pista de skate, que deveríamos ocupar mais. A Praça de Morro Agudo, que foi a primeira sede do Enraizados.

Esses lugares acolheram as lideranças e artistas do Enraizados até termos nosso próprio espaço.

Gabrielle Almeida: Se existisse um museu do hip hop em Nova Iguaçu, como você gostaria que fosse?

Queria um museu vivo. Que a cada nova pessoa que entrasse pro hip hop, fizesse parte do acervo. E que aproveitasse essa era tecnológica: que tivesse entrevistas como essa em áudio, texto, vídeo… muita imagem de como era antigamente, mas sempre atualizando.
Tinha que mostrar a estética de cada década — manequins com roupas dos anos 80, 90, 2000, 2010. Tinha que ter também as marcas do hip hop: FUBU, XXL, Conduta.

Hoje em dia, essas marcas meio que desapareceram. E tem umas coisas que me incomodam, tipo tu ir num samba e todo mundo estar vestido como rapper. Bonezinho, camisa larga…

Mas no fundo, tudo se misturou. As músicas de periferia andam de mãos dadas. Eu comecei ouvindo samba, depois fui pro funk, depois pro rap. Hoje a gente tem samba aqui no Enraizados. Tá tudo junto.

Mesmo quando vem alguém do samba, eles chegam com a estética do rap.

A mistura tá feita.

ÁLBUM